Dívidas se aproximaram de R$ 1 bilhão e Corinthians caminha em direção da catástrofe
Andrés Sanchez voltou à presidência do Corinthians e fez, nas palavras dele, um mandato “nota 6,5”. Não era o mesmo cartola da primeira passagem, da época em que contratou Ronaldo e viabilizou a construção de um estádio para o clube. Desta vez, ele governou “sem tesão” – mais uma vez, uma avaliação do próprio cartola.
Do ponto de vista financeiro, esta segunda gestão em nada se pareceu com a primeira. Entre 2007 e 2011, a chegada de Andrés ao poder foi sucedida pelo crescimento das receitas, pelo protagonismo em assuntos coletivos, como o fim do Clube dos 13, e pelo medo generalizado de que o Corinthians pudesse “duopolizar” o futebol com o Flamengo.
Nesta administração, que durou de 2018 a 2020, um dos poucos legados que Andrés deixou foi a readequação das contas da Neo Química Arena – inclusive, com os naming rights. No mais, deficit e dívida são palavras que o corintiano introduziu em definitivo no vocabulário.
O dirigente se explicou algumas vezes sobre os problemas financeiros. O Corinthians comprometeu dinheiro demais na compra de jogadores, sobretudo em 2019. Ele reclamou de problemas vindos de mandatos anteriores, entre receitas antecipadas e dívidas herdadas.
– Dívida é problema, deficit é problema, mas não é que o Corinthians vai fechar amanhã ou está falido. Não vai ser o time do mais rico do mundo. Antes era o Palmeiras, agora é o Flamengo e amanhã sei lá quem vai ser – disse Andrés.
Neste texto, com base nas demonstrações financeiras referentes a 2020, será possível entender a dimensão e a natureza dos problemas financeiros que Andrés deixou para seu sucessor: o atual presidente, Duílio Monteiro Alves, a quem ele apoiou durante a eleição.
Panorama
A comparação de faturamento (tudo o que foi arrecadado durante a temporada) e endividamento (tudo o que havia a pagar no último dia do ano) é uma medida para a crise alvinegra. Nas últimas duas décadas, o Corinthians nunca teve uma proporção tão ruim entre esses indicadores.
As receitas até registraram um aumento na temporada passada, mas, de maneira geral, a associação está no mesmo patamar há cinco anos. Neste mesmo período, Palmeiras e Flamengo multiplicaram seus faturamentos e assumiram posições de protagonismo no futebol.
Ao mesmo tempo, as dívidas dispararam. Com R$ 983 milhões no total, além de ações cíveis e trabalhistas que podem ter sido omitidas, o Corinthians se aproximou do ingrato “clube do bilhão” que ganhou no ano passado vários integrantes. Entenderemos os números no detalhe.
Receitas
Na época do Clube dos 13 e também no período posterior, de negociações individuais com a Globo, entre 2012 e 2018, o Corinthians sempre esteve no topo da lista de direitos de transmissão. Valores eram quase integralmente fixos e privilegiavam o clube por causa da torcida.
À medida que o futebol brasileiro foi tornando suas receitas de televisão mais variáveis, isto é, condicionadas ao desempenho em campo no Campeonato Brasileiro e na Copa do Brasil, essa liderança foi perdida. Flamengo, Palmeiras e Grêmio passaram à frente em 2020.
A receita com direitos de transmissão tem uma particularidade. Como dirigentes adiaram parte das partidas para o calendário de 2021, parte relevante será classificada somente no balanço do ano seguinte. Mas esse asterisco em nada muda a comparação com outros clubes.
Nota técnica: receitas com loterias, que deveriam constar em “outros”, estão excepcionalmente em “torcida” no gráfico acima. O clube mistura este número com sócios-torcedores em seu balanço
A área comercial representa um ponto forte – apesar da enorme quantidade de marcas estampadas no uniforme alvinegro. Com mais de R$ 70 milhões apenas em patrocínios, além de licenciamentos e franquias, o Corinthians está entre as maiores receitas do país.
Entre linhas de arrecadação que estão diretamente ligadas à torcida, o clube não pode contar com as bilheterias para suas contas do cotidiano, pois todo o dinheiro da venda de ingressos é direcionado para o estádio. A arena é administrada por pessoa jurídica diferente, com outro caixa.
Em 2020, a salvação apareceu nas transferências de atletas. A saída de Pedrinho para o Benfica já no primeiro trimestre permitiu que essa linha de arrecadação disparasse. A antecipação de parte deste recebível contribuiu para que a situação não ficasse ainda pior.
Nota técnica: Bilheterias não foram incluídas nos gráficos, bem como outras receitas e despesas da Neo Química Arena, pois o clube não contabilizou as dívidas pelo financiamento do estádio no balanço
Orçado versus realizado
A administração também pode ser testada por meio da comparação entre orçamento (com previsões dos próprios dirigentes para a temporada) e balanço (no qual aparecem os valores concretizados). No caso do Corinthians, em 2020, há discrepâncias relevantes.
Nas receitas, o valor orçado (R$ 422 milhões) não esteve muito distante do realizado (R$ 404 milhões). A distribuição do dinheiro entre cada fonte, no entanto, entrega o que ficou aquém ou além das expectativas.
Nos direitos de transmissão, a meta orçamentária não foi cumprida. Em partes, porque valores foram adiados para o balanço do ano seguinte. Também porque o time precisaria ter avançado além das oitavas de final na Copa do Brasil para recolher as premiações das fases seguintes.
Nas transferências de jogadores, a venda de Pedrinho permitiu que a previsão fosse excedida. Em teoria, o sucesso nesta linha compensou a frustração na televisão. Outras receitas não tiveram grandes decepções em relação ao que era esperado; ficaram apenas um pouco abaixo.
Nota técnica: como o clube não separou o custo de folha salarial apenas do futebol no orçamento, o blog usou no quadro acima toda a folha, que inclui atividades sociais e esportes amadores/olímpicos
Em relação ao custo, o blog destaca a folha salarial. Trata-se da soma de salários, encargos trabalhistas, direitos de imagem e de arena. Ideal seria ter este valor apenas para o departamento de futebol, mas o detalhamento do orçamento corintiano foi insuficiente nesse aspecto.
Os valores apontam para uma redução em relação ao que estava previsto para a temporada. O departamento financeiro previa que essa diminuição fosse acontecer por causa do encerramento (e a não renovação) dos contratos com vários jogadores do elenco.
Resultado financeiro é um item composto por variação cambial, atualização monetária, taxas bancárias e impostos sobre operações financeiras. Para que se tenha ideia, dentro dele há R$ 33 milhões que o Corinthians desperdiça com juros sobre empréstimos e financiamentos.
No resultado líquido, a frustração foi imensa. Para que a última linha tivesse sido melhor, a associação precisaria ter arrecadado muito mais ou gastado muito menos. Faltou dinheiro para fechar a conta em 2020, e este fato ajuda a dimensionar os problemas para 2021 em diante.
Dívidas
Como é possível que um clube com R$ 400 milhões em faturamento tenha a pagar, só no curto prazo, em menos de um ano, quase R$ R$ 580 milhões? Esta é a situação no Corinthians. Que não conseguiria honrar seus compromissos nem se gastasse toda sua arrecadação com eles.
Na prática, a diretoria tem algumas opções. Ela pode buscar empréstimos bancários e usar o dinheiro para “rolar” a dívida. Ou pode renegociar prazos e valores com credores para esticar os pagamentos. Se nada der certo, calote. E aí cobranças por vias judiciais ficam piores.
O Corinthians tem recorrido ao mercado financeiro para pegar dinheiro emprestado. Somente em 2020, entraram R$ 132 milhões em créditos novos e saíram R$ 162 milhões em pagamentos de empréstimos que tinham sido tomados no passado. As quantias são superlativas.
Entre instituições financeiras, há dois parceiros frequentes no Parque São Jorge: BMG, a quem o Corinthians deve R$ 38 milhões, e Banco Daycoval, com quem a dívida chegou a R$ 44 milhões. Eles emprestam dinheiro e pegam contratos como garantia. Na prática, são antecipações.
Além dos bancos, a diretoria alvinegra foi buscar dinheiro com empresários do mundo da bola. Trata-se de tipo de dívida controverso, porque amarra a agremiação com essas figuras. São eles:
- R$ 9,6 milhões para Giuliano Bertolucci
- R$ 7,7 milhões para Carlos Leite
- R$ 2,2 milhões para André Cury
E essas são proporcionalmente as menores dívidas corintianas. O clube encerrou 2020 com R$ 327 milhões pendurados em parcelamentos de impostos, representados no gráfico abaixo como “fiscal”. Entram aí o Profut e transações tributárias assinadas recentemente com a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN).
Em relação aos jogadores cujos direitos foram adquiridos, uma justificativa apresentada por Andrés para o alto endividamento, o balanço foi produzido pelo clube de maneira a ocultar a maior parte das informações. Não há, por exemplo, uma linha que detalhe essas dívidas.
Além disso, R$ 217 milhões foram classificados em “fornecedores”. Possivelmente, as aquisições de atletas estão incluídas nesta parte. Quais são os valores dos direitos? Quanto o clube prometeu em comissões para intermediários? Para quem? Ninguém sabe, ninguém viu.
Dívidas não provisionadas
O Corinthians tem ações judiciais (cíveis e trabalhistas) movidas contra ele em andamento. Em cada balanço, a diretoria determina a probabilidade de perda nesses processos segundo as nomenclaturas:
- “Provável”
- “Possível”
A contabilidade manda que ações com perda “provável” sejam inseridas no passivo entre as “provisões para contingências”. O clube cumpriu a regra contábil e colocou R$ 62 milhões nessas provisões.
Ações judiciais com perda apenas “possível” não devem ser incluídas no passivo, mas, caso a diretoria quisesse demonstrar transparência, informaria esses valores em nota explicativa. O Corinthians não o fez. Números omitidos podem tornar o endividamento ainda maior.
Futuro
Duílio Monteiro Alves, atual presidente do Corinthians, foi diretor de futebol e o aliado mais próximo de Andrés Sanchez em seu segundo mandato. Ainda que possivelmente não tenha se envolvido tão de perto com as finanças, é corresponsável pelo estrago causado nas contas.
O clube do Parque São Jorge tem problemas de naturezas variadas para lidar. No curto prazo, o desafio é o de manter salários do futebol profissional em dia, para que pelo menos o elenco não sinta tanto as consequências negativas do endividamento excessivo.
Investimentos em contratações de novos jogadores deveriam ter sido descartados. Por mais que o tamanho da torcida e a pressão (equivocada) da mídia por reforços sejam apelativos, chegou-se a um ponto em que assumir ainda mais riscos pode ser catastrófico.
Em termos de transparência, o Corinthians foi um clube razoavelmente vanguardista, no início da década de 2010, quando produziu seus primeiros relatórios de sustentabilidade e criou uma rotina de publicação de documentações financeiras. Isto se perdeu ao longo dos anos.
Para piorar, são muitos os pontos obscuros no balanço anual. Receitas inadequadamente misturadas, dívidas sem nenhum detalhamento, ações judiciais omitidas. Caso queira estreitar laços com seu torcedor, a nova diretoria poderia ao menos se importar com essa transparência.
No longo prazo – nem tão longo assim! –, o Corinthians está sendo desafiado a se manter no topo da pirâmide do futebol. Parte de seu sucesso esportivo recente se explica pelo fato de que, por vias diferentes, o clube paulista alcançou vantagem financeira em relação aos principais rivais. Há anos, esse privilégio se desfez. Hoje, Palmeiras e Flamengo estão na frente na grana e na bola. Todos sabem disso.
As dívidas chegaram a números dramáticos. No entanto, em função do tamanho de sua torcida, existe potencial para que a arrecadação volte a crescer e permita uma virada. O corintiano só não pode acreditar que esses movimentos acontecem de maneira aleatória. Se a direção alvinegra não solucionar urgentemente suas contas, os tempos sombrios de segunda divisão podem estar mais próximos do que parecem.