Esporte

Kelvin Hoefler, prata nas Olimpíadas, era ‘Menino Maluquinho’ e ganhou skate para gastar energia

Parecia o gol do Ronaldinho Gaúcho contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 2002.

Enéas, 58, saiu descalço pela rua gritando. Os vizinhos saíram para abraçá-lo. A família, que ficou acordada até as 2h, comemorava na sala. Uma bandeira do Brasil tremulava na janela do segundo andar.

Mas em vez de gol o grito era de “prata”. Kelvin Hoefler havia acabado de conquistar o segundo lugar nas Olimpíadas de Tóquio, a primeira medalha do Brasil na estreia do skate em Jogos.

A família recebeu a reportagem na tarde deste domingo (25) após passar a noite quase em claro para celebrar o triunfo do atleta, nascido há 28 anos em Itanhaém e criado naquela mesma rua no Guarujá, no litoral de São Paulo, onde seu Enéas correu em êxtase.

A rua da infância de Kelvin era diferente. Agora asfaltada, era de paralelepípedo. E o skatista, que hoje tem fama de pacato e utiliza fones no ouvido só para não ser incomodado, não era tão calmo assim.

“Demos o skate para ele parar de ser tão elétrico. Ele ficava como um louco aqui na sala com um velotrol. Sabe aquele do ‘Menino Maluquinho’? Ele chegava da escola, e eu já escutava aquele barulho na calçada”, lembra Enéas, que, a certa altura, estava convencido de que o filho teria que trabalhar com algo que não exigisse concentração.

O skate chegou aos oito anos de idade, mas antes os pais tentaram colocar o pequeno santista no futebol –”ele pediu para sair porque não tocavam a bola para ele”– e no surfe –”ele achou a água muito gelada e ficou traumatizado com os diversos caldos que levou”.

Sem bola nem água gelada, Kelvin obteve em Tóquio, na categoria street, 36.15 pontos na soma de suas quatro melhores notas na final. Disputando em casa, o japonês Yuto Horigome, 22, foi medalhista de ouro, com 37.18, e o americano Jagger Eaton, 20, foi bronze com 35.35.

Após duas boas voltas que lhe colocaram na liderança da decisão, ele tinha cinco tentativas para acertar manobras e precisava conseguir ao menos duas. Acertou a primeira com uma boa nota –8.99–, errou a segunda e a terceira. A pressão aumentou, mas ele respondeu com uma tentativa mais segura, que lhe rendeu 7.58, e finalizou com sua melhor manobra: 9.34.

“Se não fosse o vento, a gente poderia ter levado [o ouro]. Infelizmente, eu errei duas manobras devido ao vento, tive esse empecilho”, disse. Mas a prata claramente não significou descontentamento.

“Essa medalha aqui… Acredito que é um ganho para o skate em geral do Brasil. A gente vem batalhando. É bem difícil a modalidade no Brasil, então eu cresci tendo muitas dificuldades. Isso aqui não é só meu, é de todos os skatistas do Brasil, de toda a galera que vem torcendo pela gente”, afirmou.

Pelas paredes da casa da família, além de shapes e troféus, há pendurada uma bicicleta utilizada pelo medalhista para viajar com o pai e a irmã, que também gostava de skate, até Santos, local mais próximo onde havia pistas decentes. Espantado com o interesse dos filhos, Enéas, um policial da reserva, mergulhou no YouTube para aprender técnicas de skatistas consagrados e como construir obstáculos.

Em pouco tempo, a casa toda havia se tornado uma pista. Ainda hoje, os rodapés trincados carregam as marcas das andanças dos filhos. “Ele vinha da cozinha, passava pela sala e ia para o quintal. Eu ficava doida, ele passava na frente da TV, [eu estava] cozinhando e ele batia no fogão e derrubava as panelas”, lembra a mãe, Roberta, 53. “E tínhamos dois cachorrinhos pequenos que corriam atrás dele.”

Demorou pouco tempo para Kelvin despontar. Hoje, além da medalha olímpica, está no livro dos recordes como maior campeão mundial de seu esporte, com seis títulos. Também venceu dois X-Games.

A casa da família no Guarujá cresceu depois de o skatista comprar um dos imóveis vizinhos. Depois, o multicampeão foi morar em Los Angeles, em uma casa afastada perto de uma montanha, com a esposa Ana Paula Negrão, que ele conheceu em sua primeira viagem ao exterior, com 17 anos.

Após o título em Tóquio, Kelvin conseguiu conversar com a família no telefone apenas por volta do meio-dia, mais de 10 horas após a conquista, tamanha era sua lista de deveres. E sequer poderá visitar o Brasil para comemorar –já tem compromissos marcados nos Estados Unidos.

A família entende. Diz que são problemas de uma carreira vitoriosa. Mas sente saudade. Saudades que também trazem a esperança de que a medalha mude o panorama do skate local, que tem nomes fortes no cenário mundial. Além de Kelvin, Leticia Bufoni também foi criada no Guarujá.

“Quero que chegue um momento em que não aconteça o que aconteceu com meu filho: ter que sair do país. Vamos ver se agora essa mentalidade muda, se a nova geração fica aqui, com pistas boas para treinar, com patrocinadores que deem apoio no começo da carreira. Temos muita saudade”, diz o pai.

A reportagem visitou cinco pistas de skate no Guarujá indicadas no Google Maps. Uma delas sequer existe. As outras, mesmo em um domingo de sol, estavam vazias –e não em razão da pandemia, já que o movimento nas praças, calçadas e bares existia, além do constante passar das bicicletas.

Em um das pistas, da Guaiuba, quatro amigos pensavam como reunir dinheiro para reformar o local.

Questionados onde era possível andar bem de skate na cidade, os rapazes acenaram negativamente. A avaliação é a de que Kelvin precisou ser muito fora de série para conseguir chegar aonde chegou.

Fonte: Folhapress

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