Esporte

Uma noite, quatro derrotas e um alerta sobre o calendário brasileiro

Faz 18 anos que o futebol brasileiro tem uma estrutura de calendário similar à atual. Durante todo este tempo, seus atores se recusaram a discutir com a devida profundidade uma reforma. Por ora, a única certeza é que a atual quantidade de jogos não cabe num ano. Temporada após temporada, clubes assumem mais compromissos do que podem cumprir, fazem escolhas quase forçadas por uma agenda inexequível e o país finge não perceber o problema. Se a rotina já era inviável antes da pandemia, não seria agora que iria funcionar.

É possível contornar o tema como o Brasil tem feito. Só não é possível tratar como coincidência que a pior noite dos clubes do país na atual Libertadores coincida com as finais dos Estaduais. Por mais que se argumente que o mais sério risco de eliminação no torneio sul-americano é do Santos, justamente o clube já eliminado no Paulista, as quatro derrotas desta terça-feira alertam para a insanidade que se pratica no Brasil.

Por mais anacrônico que pareça na era da globalização, somos um país em que resultados berram, em especial se a derrota for para o vizinho de aldeia. Eis o mundo real do Brasil. Os Estaduais podem valer menos do que já valeram, mas seus desfechos produzem efeitos: derrubam técnicos como no Corinthians, colocam sobre os ombros de um espanhol recém-chegado o peso da contagem de Gre-Nais perdidos, causam instabilidades, interrompem projetos. Não faz sentido que a quantidade de datas ocupadas pelos torneios locais permita que as decisões coincidam com torneios tão mais relevantes.

Em nome de sua “Copa do Mundo”, como o clube definiu o Campeonato Paulista, o São Paulo fez seu segundo jogo seguido pela Libertadores com um time todo reserva. Contra Rentistas e Racing, somou só um ponto. O que era uma chave dominada agora vê o tricolor chegar à rodada final na segunda posição. Provavelmente, decidirá como visitante o mata-mata das oitavas de final. É estranho, porém compreensível, um clube carente de títulos nos últimos anos privilegiar a reta final do Estadual. O criminoso é a decisão começar 48 horas depois do duelo contra o principal rival de seu grupo na Libertadores.

Adversário do São Paulo na final de quinta-feira, o Palmeiras tinha menos a perder. Nada colocaria em risco a classificação e a liderança do grupo na Libertadores, mas foi justamente às vésperas do clássico decisivo que o time reserva sofreu quatro gols pela primeira vez sob o comando de Abel Ferreira.

Enquanto isso, no Maracanã, um ponto bastava para dar ao Fluminense a classificação antecipada numa chave dificílima no torneio sul-americano. Mas após dosar energias durante todo o Carioca, o tricolor usou força máxima no Fla-Flu do último sábado e, pela primeira vez no ano, expôs sua equipe titular a três jogos em seis dias. A derrota para os colombianos do Junior pode até transformar a última rodada num drama.

Aliás, a inconveniência dos Estaduais é anterior à pandemia, frequentemente feita de muleta. Em 2008, o Flamengo perdeu larga vantagem para o América do México, no Maracanã, três dias após ser campeão do Rio. História repetida em 2014, com derrota em casa para o León entre a ida e a volta da decisão com o Vasco.

Em 2012, o Fluminense bateu o Botafogo três dias antes de perder, na Argentina, a abertura do mata-mata com o Boca: uma semana depois, seria eliminado. Em 2011, como mostrou o Blog do PVC, quatro brasileiros foram eliminados às vésperas das finais dos Estaduais.

Domingo, haverá campeões celebrando e derrotados lamentando, tudo parecerá mais relevante do que é, até o tempo colocar as coisas nos devidos lugares. O dano da derrota num Estadual se tornou maior do que recompensa pela vitória, como numa encruzilhada entre a crise ou a paz que dura alguns poucos dias. Os clubes, com seu silêncio, são sócios do problema. Noites como a de terça-feira nos lembram que não é mais possível fingir que há algo errado.

Fonte: GE

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *